O objetivo da entrevista no Ensino Fundamental I é primeiramente o posicionamento em relação às questões sociais e visão da tarefa educativa como intervenção internacional no presente.
Também podemos destacar o tratamento de valores como conceitos reais, inseridos no contexto do cotidiano e a inclusão dessas perspectivas no ensino dos diversos conteúdos escolares.
RUBEM ALVES
Entrevista Rubem Alves
Um dos mais importantes educadores brasileiros fala sobre a escola de hoje, a relação aluno-professor e uma alternativa para o vestibular.
Rubem Alves é um consagrado escritor brasileiro, autor de livros como A Escola Com Que Sempre Sonhei e Ao Professor, Com o Meu Carinho. Importante pensador e crítico da Educação do nosso país questiona o modelo clássico de ensino, no qual o professor se preocupa apenas em passar conteúdos aos seus alunos. “Esse modelo não funciona mais. É preciso saber quais perguntas os alunos estão fazendo. O ensino tem a ver com a capacidade de fazer perguntas. Isso desenvolve a inteligência”, defende.
Para o também psicanalista e professor emérito da Unicamp, as escolas de hoje em dia estão muito desinteressantes, sobretudo porque não estão lidando com questões cruciais da vida das crianças, ou seja, não estão aproveitando o seu entorno. “As crianças têm interesse por aquelas coisas ao alcance de suas mãos. Não adianta trabalhar com abstrações”, explica.
Defensor convicto do fim do vestibular, Rubem Alves propõe uma forma alternativa de selecionar alunos que querem ingressar numa universidade. “Eu proponho sorteios”, radicaliza o educador, que logo explica: “Seria um exame nacional, do tipo Enem, para ver se os alunos atingem o mínimo de conhecimento. O exame teria, portanto, duas notas: passou ou não passou. Aqueles que tivessem passado por essa fase, iriam para o sorteio”.
Mas por que um sorteio? Segundo ele, para eliminar a questão das cotas, uma vez que as minorias discriminadas teriam tanta chance quanto qualquer outro. “As cotas criam muita raiva entre os que entraram assim e quem entrou pó esforço próprio”, finaliza.
Veja a seguir entrevista completa.
1.A escola hoje é muito diferente para a criança?
Rubem Alves: A escola é chatíssima. Isso explica o desinteresse das crianças. Para se aprender, a gente tem que lidar com aquelas questões que são cruciais para a vida. A escola não está lidando com elas. Não tendo interesse da escola, não há mágica para que os professores convençam os alunos a estudar. Com honrosas exceções – tem gente se esforçando para mudar isso – a norma é que as escolas são chatas.
O que as crianças deveriam aprender na educação básica?
Rubem Alves: O que deveria determinar o programa é o entorno da pessoa que vai aprender. Eu tenho de aprender o meu entorno. Veja uma coisa interessante: eu descobri que as crianças muito pequenas fazem mapas. Uma criança de dois anos faz mapas, o que é um negócio complicado. Na sua casa, ela não anda feito barata tonta, mas sabe perfeitamente qual corredor dá na sala, que dali você sai para a cozinha. Então ela está aprendendo o seu entorno que é o circulo vital da criança.
3.A casa é um ambiente ideal para a aprendizagem?
Rubem Alves:Sim. Eu imaginei um programa que tomasse a casa como laboratório. Por exemplo, na sala, você aprende ângulos, linhas, proporções. Na cozinha, você aprende química. No banheiro, há lições fantásticas de ecologia, de ambiente. Eu aprendi isso viajando com meus filhos. Eles não tinham o menor interesse pelos cenários maravilhosos que passavam pela janela. Tinham interesse por eles mesmos no banco de trás, um brigando com o outro. As crianças têm interesse por aquelas coisas ao alcance de suas mãos. Não adianta trabalhar com abstrações. Eu fiz um livro que as crianças adoram chamado “Vamos construir uma casa?”.
4.O concreto torna a aprendizagem mais agradável?
Rubem Alves: Muito mais agradável. Você vê as coisas, faz as coisas. Eu falo isso a partir da minha própria experiência. Quando era menino, aprendi a usar todas as ferramentas de casa. Pegue a questão da física, por exemplo. As fórmulas da força, da velocidade, da aceleração são uma abstração total. Se você pegar um prego, colocar sobre uma tábua puser um martelo em cima e perguntar para uma garotinha: vai martelar? Ela vai dizer: não, precisa bater. Quando ela diz precisa bater, está anunciando a lei. A força é massa vezes aceleração. Então eu penso em ensinar física mecânica com a caixa de ferramentas, que é uma coisa que tem na casa. Por que não se trabalham os materiais que existem numa casa?
5.A escola como único ambiente educacional é limitante ao aluno?
Rubem Alves: Em São Paulo, há um exemplo típico disso: o projeto Aprendiz, do Gilberto Dimenstein. As crianças aprendem nas ruas, nas coisas que estão ao redor dela. Uma das razões para você ter na escola é a razão administrativa. É um lugar onde você põe a carneirada toda e trabalha com todos eles ao mesmo tempo. Não é uma razão pedagógica. Agora se você quer aprender sobre a fazenda, tem que ir até lá, colocar a mão na terra, mexer com as plantas. É preciso ir ao lugar para conhecer, porque a escola, querendo ou não, é um ambiente artificial. A vida não está acontecendo lá.
6.Os professores deveriam ouvir mais os alunos e não apenas impor aquilo que está na grade curricular?
Rubem Alves: O Bruno Bettelheim foi um dos grandes educadores do século passado. Quando estava bem velho, numa entrevista, disse que os professores na escola dele tentavam ensinar, do jeito que eles queriam ensinar, mas ele não queria aprender. O aluno precisa se sentir respeitado pelo professor. É uma questão fundamental. A minha imagem de professor é ele falando e os alunos quietos. O professor está sempre dizendo “silêncio, silêncio”. É preciso saber quais perguntas os alunos estão fazendo. O ensino tem a ver com a capacidade de fazer perguntas. Isso desenvolve a inteligência. Seria bom que isso fosse ensinado nas faculdades de pedagogia e educação.
7.Como preparar melhor o professor?
Rubem Alves: A alma de tudo é o professor. Não adianta programas novos, novas leis, se o professor tiver a cabeça velha. Em nosso modelo clássico, o professor é aquele que sabe a matéria. Ele vai cobrar a matéria. Esse modelo não funciona mais. O professor tem que ser aquele que pergunta que está junto com os alunos. Não dá respostas, mas provoca os alunos para ver se eles pensam por conta própria.
8.O sistema de repetência nas escolas é eficiente?
Rubem Alves: Repetir um ano inteiro porque você fracassou em uma disciplina, ou duas, é castigo muito grande, você não acha? Não tem o menor sentido. Mas eu não concordo com o sistema de aprovar todo mundo, de qualquer maneira. Apesar disso, o sistema de repetência é cruel e antipedagógico, além de causar irritação nos alunos.
9.Como incentivar a leitura em uma criança?
Rubem Alves: Às vezes as pessoas me perguntam o que fazer para adquirir o hábito da leitura. Eu digo nada, porque hábito tem a ver com escovar dente, cortar unha, tomar banho. É algo que você faz mecanicamente. É preciso, no entanto, desenvolver o prazer da leitura. Eu tive um professor de literatura, um sujeito extraordinário, que chegou à classe um dia e falou: vocês não precisam se preocupar com presença, quem não quiser assistir aula, não precisa. Ninguém se preocupe com passar de ano, todos vocês já passaram de ano. E por fim, completou: agora que essas questões irrelevantes foram resolvidas, vamos tratar do que importa que seja a literatura.
Ele não ensinava as escolas literárias, análise sintática. Contava as grandes histórias da literatura mundial, com uma paixão comovente. Ele nunca pediu para a gente ler. Eu só me dei conta disso depois de velho. Ele sabia que, se a gente fosse ler, ia odiar a literatura por uma razão muito simples: não sabíamos ler. A gente sabia juntar letras. A minha sugestão é que os professores leiam para os alunos. Assim eles vão ter prazer pela leitura. Ler é uma arte tão complicada quanto tocar piano. O professor tem que dominar a técnica da leitura para surfar em cima das palavras. É preciso que as prefeituras organizem programas de leituras.
10.Você concorda com os livros que normalmente são indicados para o vestibular?
Rubem Alves:Quando você diz que um livro vai ser objeto de exame, já estragou a leitura do livro. A leitura é um exercício de vagabundagem. O aluno na pode ficar tomando anotações e pensando o que vai cair na prova. Outro problema é que quando fazem as listas de livros para o vestibular, começam a surgir resumos das obras. Em vez de ler o livro, o aluno lê o resumo. É a mesma coisa de fazer um resumo da Nona Sinfonia. Um livro não pode ser resumido.
11.Você já chegou a defender o fim do vestibular. Qual seria a alternativa para o aluno ingressar numa universidade?
Rubem Alves: Agora está aparecendo uma alternativa, eu fiquei muito feliz com isso. Eu proponho sorteios. Seria um exame nacional, do tipo Enem, para ver se os alunos atingem o mínimo de conhecimento, sem ser classificatório. O exame teria, portanto, duas notas: passou ou não passou. Aqueles que tivessem passado por essa fase, iriam para o sorteio. O sorteio eliminaria a questão de cotas porque as minorias discriminadas teriam tanta chance quanto o outro. As cotas criam muita raiva entre os que entraram assim e quem entrou por esforço próprio. Se houver sorteio, esse problema não existiria.
12.E quem não for sorteado?
Rubem Alves: Isso é inevitável. Alguns vão ficar de fora. E vai haver injustiça, mas uma injustiça menor do que a que existe agora. A que existe agora começa pela deformação do processo de pensamento.
Dados pessoais Nasceu em Dores da Boa Esperança, sul de Minas Gerais. Tem 71 anos, três filhos e cinco netas
Trajetória pessoal Bacharel em Teologia, doutor em Filosofia, psicanalista e professor emérito da Unicamp. ''Prefiro chamar esta lista de'curriculum mortis'. Meucurriculum vitae você encontrará nas minhas crônicas, pensamentos, cartas''
Livros São mais de 50 títulos voltados para adultos e crianças
ÉPOCA - O senhor afirma que a maioria das escolas é chata? Por quê?
Rubem Alves - Não é de hoje que a escola é chata. Ela sempre foi assim e isso acontece porque as coisas são impostas às crianças. A prova de que uma criança gosta de ir à escola é se, na hora do recreio, ela está conversando com os amigos sobre as coisas que a professora ensinou. E não se vê isso. Então fica evidente que elas gostam da escola por causa da sociabilidade, dos amiguinhos, por causa do recreio. Mas elas não estão interessadas naquilo que se ensina na escola. Você acha que um adolescente, vivendo na periferia, pode ter interesse em dígrafos (grupo de duas letras usadas para representar um único fonema)? Não tem interesse nenhum. Existe outra expressão terrível: grade curricular. Já brinquei que deve ter sido cunhada por um carcereiro. A criança está vivenciando problemas que não têm nada a ver com os assuntos das aulas. Mas os professores apenas se justificam, dizendo que o programa afirma que é aquilo que se deve ensinar e acabou. Eu diria que na escola tradicional não se leva em consideração o desejo de aprender da criança. Elas expressam isso através dos questionamentos que fazem.
''Às vezes vejo os professores como esses guias turísticos que vão todo dia ao mesmo monumento, levando um grupo diferente e repetindo as mesmas palavras''
ÉPOCA - Quais questionamentos? Alves - Se você reparar, as crianças fazem perguntas incríveis para conhecer melhor o mundo. Uma delas é: ''Quem inventou as palavras?''. Há outras boas: ''Gato podia chamar cavalo e cavalo chamar gato? Por que canteiro chama canteiro? Devia chamar planteiro, que é onde ficam as plantas! Por que a chuva cai aos pinguinhos e não toda de uma vez? Se na Arca de Noé havia leões, por que eles não comeram os cabritos?'' E por aí vai. Elas estão fazendo perguntas interessantes, mas as respostas não se encontram nos programas.
ÉPOCA - Por que o modelo de educação existe há tanto tempo?
Alves - Porque existe certa presunção da nossa parte, da parte dos adultos, de que as crianças não sabem nada, de que elas são vazias. E de que nós é que temos o saber.Também achamos que só nós podemos determinar o que elas têm de aprender. Isso é o que Paulo Freire denominou de educação bancária. Você vai sempre fazendo depósitos na criança. Houve um diretor de um abrigo para crianças e adolescentes em Varsóvia chamado Janusz Korczak. No abrigo dele, eram os alunos que exerciam a disciplina. E Korczak costumava dizer: ''Vocês, professores, me dizem que é muito difícil ensinar às crianças. Estou de acordo. E vocês dizem também que é muito difícil descer às crianças. Estou em desacordo. O que é muito difícil é subir ao nível de sensibilidade e de curiosidade das crianças, ficar na ponta dos pés, falar brandamente para não machucá-las''. É por isso que a escola não muda. Porque as pessoas não estão preparadas para subir ao nível das crianças.
ÉPOCA - Há salvação para esse modelo de ensino?
Alves - Eu passei por esse modelo de escola. Outros amigos meus passaram e acho que não ficamos tão atrapalhados assim (risos). Aliás, tenho memórias muito interessantes. A escola tinha muitas coisas boas e, a despeito de tudo, a gente aprende. Mas é uma perda de tempo muito grande. As escolas estão cheias de pessoas maravilhosas, mas é tanta gente que sofre, é reprovada e repete de ano que não acredito mais nesse modelo. É preciso esquecer as maneiras tradicionais de fazer escola. Estamos tão acostumados com a idéia de que a escola tem corredor, sala, campainha, que podemos até pensar em melhorar isso, mas não pensamos que a estrutura pode ser diferente.
ÉPOCA - Então, por que as escolas não mudam? Alves - Por uma porção de fatores. Um deles é a inércia. As pessoas se acostumam a fazer sempre a mesma coisa porque aí elas não têm trabalho. Se você tiver uma escola mais solta, nunca sabe direito o que vai acontecer, você não pode preparar a lição porque sempre o aluno pode fazer uma pergunta que você não sabe. Na escola tradicional, o professor é aquele que sabe a matéria e vai para a sala de aula acreditando nisso. Mas hoje as matérias estão todas na internet. Hoje, a função do professor é ensinar o aluno a pensar e a descobrir onde ele pode encontrar a resposta para as perguntas que ele tem. Essa é uma função nova e completamente diferente do professor. Os que estão acostumados a preparar a aula até costumam usar as fichas do ano retrasado. Dificilmente vão mudar.
ÉPOCA - Como convencer um professor a se atualizar? Alves - Acho que muitos desses profissionais estão acordando para isso simplesmente porque não estão mais agüentando o tédio. Tenho dó dos professores. Às vezes os vejo como esses guias turísticos que vão todo dia ao mesmo monumento, levando um grupo diferente e repetindo as mesmas coisas. Isso é muito chato. Nenhuma pessoa merece viver uma vida desse jeito.
ÉPOCA - O senhor afirma, como educador, que a escola precisa dar aos alunos ferramentas para entender o mundo. O que isso quer dizer na prática? Alves - Simplificando a minha teoria, digo que o corpo carrega duas caixas: uma de ferramentas e a outra de brinquedos. O que são ferramentas? São todos os objetos usados para fazer alguma coisa. Então, ferramentas não são fins em si mesmos. E elas são importantes porque nos dão poder. Um alicate é muito mais poderoso que meu dedo. E a primeira coisa que a escola tem de perguntar é: isso que eu estou ensinando é ferramenta para quê? Segundo: o aluno quer fazer isso? Porque não adianta você dar uma ferramenta para a pessoa, um martelo e um prego, se ela quer ser pintora. A ferramenta só tem sentido se tiver uma demanda, se eu estou querendo fazer alguma coisa. Se eu estiver interessado em plantar um jardim, vou aprender sobre as plantas, esterco e fertilizantes. O professor tem de perguntar a si mesmo isso. Se não for ferramenta, ela não vai ser guardada.
ÉPOCA - Por que não é guardada?
Alves - Se todos os reitores das nossas universidades prestassem vestibular, seriam reprovados. Porque eles esqueceram. E fizeram isso porque são burros? Não. Eles fizeram isso porque são inteligentes. Porque a memória não carrega coisas que não têm função. Também seriam reprovados os professores universitários e os dos cursinhos só passariam na própria disciplina. Eu seria reprovado. Tudo foi perdido. Já a caixa dos brinquedos está cheia de objetos que não servem para nada. Não há formas de usá-los como ferramentas. Lá estão a poesia de Fernando Pessoa, as sonatas de Mozart, as telas de Monet, pores-de-sol, beijos, perfumes, coisas que apenas nos dão felicidade. Assim se resume a educação.
ÉPOCA - Mas os alunos precisam ter conhecimentos básicos em áreas como Matemática, Biologia ou Química, não?
Alves - Para quê? Para passar no vestibular? Para esquecer tudo? Quem disse que tem de aprender isso? Por que eu tenho de aprender logaritmo neperiano? Não conheço ninguém que tenha usado isso. Se por acaso eu for precisar um dia na minha vida, estudo e aprendo. Não preciso me preocupar com isso na escola. E as pessoas não se dão conta de que todo esse conteudismo é perdido. Não sobra nada. Uma amiga minha, professora de Neuroanatomia na Unicamp, dizia que os piores alunos que ela tinha eram esses que apareciam em outdoors de primeiro lugar. Porque quando ela explica anatomia, um assunto cheio de complexidades, sempre tinha um que levantava a mão e perguntava: ''Professora, qual é a resposta certa?''. Ou seja, ele não entendia que esse negócio de ter sempre uma alternativa certa não existe. No caso do médico, com um doente terminal, o que ele faz: dá morfina ou continua com a quimioterapia? Não há resposta certa. É preciso aprender isso. E essas coisas não são ensinadas.
ÉPOCA - O senhor chegou a pregar o fim do vestibular. Por quê?
Alves - Já preguei, e quando falo nisso as pessoas acham que estou brincando. Quando eu era pró-reitor de graduação da Unicamp, queria um vestibular que avaliasse a capacidade de pensar dos alunos, e não a memória. Um professor me disse: a solução mais fácil é o sorteio. Dei uma gargalhada. Mas comecei a pensar e vi que é isso mesmo. A primeira coisa do vestibular que me morde não é decidir quem entra ou não na universidade, mas a sombra sinistra que ele lança sobre tudo o que vem antes. As escolas são orientadas para o vestibular, e os pais logo de saída querem as escolas fortes para os filhos passarem no vestibular. A primeira conseqüência de ter o sorteio é que as escolas seriam livres para ensinar. Elas não precisariam preparar os alunos para o vestibular. Então, as pessoas poderiam ouvir música, ler e fazer o que quisessem. Seria a libertação das escolas para realmente ensinar. Em segundo lugar, acabariam os cursinhos. Se tiver sorteio, ninguém pode reclamar. Sorteio é sorteio. Acabaria o sofrimento psicológico dos alunos, que têm a auto-imagem destruída. Também acabaria o conflito entre pais e filhos.
''Se os reitores prestassem vestibular, seriam reprovados. Porque são burros? Não. A memória não guarda o que não tem função''
ÉPOCA - Mas um vestibular por sorteio poderia ter muita injustiça?
Alves - Várias pessoas me dizem isso. Claro que poderia, mas não do tamanho da injustiça que existe no atual sistema de vestibular, que nada mais é que uma grande perda de tempo, de dinheiro, de inteligência e de conhecimento. Também me perguntam se qualquer aluno, sem o menor preparo, poderia entrar na universidade. Respondo que não. Haveria no final do ensino médio um exame no país inteiro para verificar se os alunos atingiram um ponto mínimo exigido. E não seria classificatório. Quem passasse poderia participar do sorteio. Quem fosse reprovado poderia refazer a prova depois.
ÉPOCA - É polêmico... Alves - Não acho, não. Acho que é uma solução óbvia. É mais inteligente que o modelo que existe atualmente. E menos danosa.
ÉPOCA - Como educador, o senhor não se dedica apenas a escrever livros voltados para o tema. Também tem publicações em formato de contos, prosa e versos. Por quê?
Alves - Eu não tenho livros de teoria. Escrevo contos e faço isso brincando. Então, sinto prazer mesmo quando estou falando sobre coisas teóricas. Mas sempre abordo o tema da educação por meio de metáforas. Inclusive sob a forma de poesia. Por isso muita gente não me leva a sério. Dizem que o Rubem Alves não é cientista. Não sou mesmo. E nem quero ser. Cientistas, já temos em excesso.
ÉPOCA - E este último livro nasceu como?
Alves - Escrevo muita coisa e, no meio dessas, de algumas eu gosto mais. É como se fossem snap shots, instantâneos da alma. Neste livro, há uma série deles. Você pode abrir em qualquer lugar. Não tem argumento, não quer provar nada, não há nenhuma tese. Uma vez escrevi uma crônica sobre a função cultural das privadas. Essa palavra é considerada feia. Quando se fala numa festa, o dono da casa retruca ''o banheiro'', ''o toalete'' e, quando você chega lá, é privada. Esse nome é tão bonito, tem a ver com privacidade, com estar sozinho, onde ninguém te interrompe. Lá é lugar escolhido por muitas pessoas para ler jornal. Um lugar de erudição, de conhecimento. Então, sugeri aos artesãos que fizessem umas miniestantes para instalar na frente do ''trono''. Nelas poderia ser colocada uma série de livros. Mas livros que tenham textos curtinhos. Aí a pessoa pode aproveitar para pensar, refletir. Acho que esse meu novo livro daria muito bem para esses momentos.
Referência Bibliografica:
http://revistaepoca.globo.com/ acessado em 12/052014 as 00:23 postado por Adriana Vaz de Souza Silva RA 3729620774
Entrevista
- Maria Malta Campos
Recém-empossada como membro
do Conselho Técnico-Científico da Educação Básica, órgão da nova estrutura da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do MEC, Maria Malta
Campos é uma das principais referências nacionais quando o assunto é educação
infantil. Professora da PUC/SP, presidente da ONG Ação Educativa e pesquisadora
sênior da Fundação Carlos Chagas, começou nos anos 70 a investigar temas
ligados à educação no espectro dos 0 aos 6 anos, tais como currículo,
habilidades pré-escolares, creches, necessidades para o atendimento à criança,
formação de educadores, qualidade e políticas públicas de modo geral. No seu
entender, para melhorar as práticas da educação infantil, é preciso olhar para
uma gama ampla de indicadores, além de atuar para convencer os professores a
melhorarem suas práticas.
Pesquisa realizada pela Fundação Carlos Chagas em 2008
mostra que a educação infantil praticamente inexiste enquanto disciplina
específica nos cursos de pedagogia. A que se deve essa lacuna?
Há dois aspectos distintos para discutir os conteúdos dos cursos de pedagogia.
Havia uma formação para a pré-escola (4 a 6 anos), que era o Curso Normal, com
elementos que permitiam às professoras trabalhar com as crianças dessa faixa
etária. Ele tinha conteúdos voltados àquela pré-escola mais tradicional, de
meio período, com algumas atividades no pátio e outras em sala de aula.
Existiam no currículo de pré-escola aspectos sobre saúde da criança, coisas não
exclusivamente de aprendizagem de conteúdos. Já o curso de pedagogia sempre
teve, historicamente, um caráter mais voltado a quem se dirigia à administração
escolar ou à orientação pedagógica e educacional, e mais voltado ao ensino
fundamental.
Ou seja, a LDB acabou com os conteúdos para a pré-escola
do antigo Normal...
Isso foi gradual, não se deveu só à LDB. Como os professores ganham um pouco
mais se têm nível superior, já buscavam essa formação. O curso de pedagogia
continuou com uma filosofia mais de conhecimentos gerais, mais teóricos e menos
especializados para a faixa etária com a qual o professor ia trabalhar.
Com menos presença da idéia de práticas de sala de aula?
Não diria isso, pois sempre houve estágio, supervisão. Mas uma sala de aula
menos preocupada com as características de desenvolvimento daquela faixa
etária. O próprio estágio raramente é feito em escolas de educação infantil,
quase sempre é nas escolas de ensino fundamental. No caso da primeira etapa da
educação infantil, de 0 a 3 anos, a exclusão é maior. Primeiro porque não
estava na área de educação até a LDB. A Constituição já apontava que deveria
ser integrada, mas quem forçou a integração foi a LDB. Esse atendimento estava
nas áreas de bem-estar ou assistência social, que não tinham nenhuma exigência
de formação profissional. Poderia haver uma educadora ou uma professora leiga
sem o fundamental completo, sendo que as creches atendiam até os 6 anos em
período integral. Ou não tinha o ensino médio completo, e muito menos o curso
de magistério em nível Normal, menos ainda o de pedagogia. O campo das creches
estava totalmente excluído das preocupações das faculdades de pedagogia. Era
como se essa criança não existisse.
E o que houve a partir da incorporação legal
das creches à educação?
A primeira coisa que passou de fato a acontecer foi a formação mínima no
magistério em nível Normal. Muitas professoras não tinham nem isso. Várias
prefeituras foram obrigadas a criar cursos para que esses educadores em serviço
tivessem ao menos o curso médio e algum módulo específico de educação infantil,
pois trabalhavam com crianças.
E a graduação em pedagogia?
Existe uma resistência à especialização dos conteúdos do curso. Alguns anos
atrás, houve um parecer do Conselho Nacional de Educação - ótimo sob vários
pontos de vista, mas não nesse - a respeito das diretrizes para formação de
professores. O documento para a formação de professores das primeiras séries do
ensino fundamental, da educação infantil - englobando a creche -, do ensino de
jovens e adultos e da educação especial é o mesmo. É impossível uma pessoa
dominar tudo isso. Defendíamos que houvesse no curso de pedagogia um módulo
geral - com conhecimentos de filosofia da educação, de história da educação, de
história política do Brasil, da evolução da questão da legislação educacional,
importantes para qualquer professor. Mas há conhecimentos específicos
fundamentais, ignorados pela maioria dos cursos de pedagogia existentes.
Por exemplo?
Conhecimentos sobre as etapas de desenvolvimento na faixa de 0 a 6 anos, em que
a criança se modifica muito. Quanto menor a criança, mais rápida a mudança;
quanto maior, mais lenta. E os conteúdos fazem tábula rasa disso.
As Referências Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil são suficientes para orientar os educadores e instituições que
trabalham com crianças de 0 a 6 anos?
É
um documento orientador, não obrigatório. Pela Constituição, o MEC não tem
autoridade para impô-lo a estados e municípios, pois são eles que formam os
sistemas de Educação Básica. A LDB deu uma grande autonomia às escolas para
deliberar sobre o seu currículo, o que considero um erro, mas é o que está na
lei. O que é obrigatório é o documento do Conselho Nacional de Educação,
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, que é bastante
geral. É um documento lindo que ninguém conhece, pois não é impresso, nem
distribuído ou divulgado, mas traz grandes princípios - de igualdade, de
equidade etc. - que os currículos devem respeitar. Não se pode infringi-los,
assim como não se pode infringir a Constituição. Mas se você for à maioria das
escolas brasileiras, ninguém ouviu falar dele e ouviu vagamente falar dos
referenciais.
Por que isso acontece?
Participei
da Comissão da Unesco/OCDE, que fez uma visita patrocinada pelo MEC em 2005.
Eram vários especialistas e eu estava na condição de especialista brasileira
que compunha a equipe. Visitamos vários estados, escolas de todos os tipos,
creches comunitárias, particulares, públicas e encontramos o documento dos
referenciais curriculares apenas em uma escola particular de Sobral (CE), a
única entre mais de 40 visitadas. E numa escola municipal de Blumenau, a
diretora tinha lido, pois havia uma citação no Plano Pedagógico da escola, mas
não sabia onde estava.
E por que esse documento é ignorado?
Isso acontece com todos os documentos produzidos na área de educação e enviados
às escolas. Qualquer coisa que se fizer e distribuir, se não houver um trabalho
subseqüente de integração do uso desse documento na prática escolar, fica na
prateleira. Ou nem isso.
Esse vácuo existe por inação das secretarias?
Não basta haver um documento. Ele, por si mesmo, não modifica nenhuma
realidade. Além dele, deve haver um trabalho - que até foi feito no governo
anterior, era o trabalho dos parâmetros em ação, que atingiu uma porcentagem
pequena. Era um treinamento que se fazia com os professores para que
aprendessem a conhecer e usar o documento. Mas se isso não é alimentado
constantemente por uma supervisão, por uma ação pedagógica que tem de ser
fomentada pelas secretarias de educação, isso não vira prática.
E por que isso não acontece?
Primeiro: em função das mudanças políticas, eleitorais, que fazem tudo sempre
recomeçar do zero. Outro fator que atrapalha é uma histórica dissociação entre
a base - as escolas e professores - e as secretarias de educação e as
autoridades educacionais. Existe uma desconfiança de base do professor com tudo
que vem de cima, seja bom ou ruim. A primeira reação é sempre contrária.
Como se quebra isso?
Conto um caso: Zilma de Morais, então secretária de Educação de Ribeirão Preto,
queria mudar a prática pedagógica nas EMEIs, introduzindo um novo arranjo do
mobiliário nas salas de aula, para as crianças não ficarem mais em filas de
carteiras, para terem cantinhos, mais autonomia, recomendações atuais, enfim.
Uma diretora e sua equipe chegaram para ela e disseram: "não acreditamos
nessa orientação e achamos que vai dar tudo errado. Vamos fazer na nossa escola
só para provar que vai dar errado". No final, adotaram e acabou dando
certo. Mas a primeira reação é sempre contra. Para conseguir mudanças na área
de educação, é preciso um trabalho bom não só do ponto de vista conceitual,
teórico, mas também bom do ponto de vista político, de envolver as equipes,
ganhar corações e mentes. Se for só na base da ameaça, não acontece nada.
Voltando aos referenciais...
É um documento que precisa ser atualizado sob vários aspectos, como por exemplo
o fato de as crianças entrarem aos 6 anos na 1ª série. Um dos pontos fracos dos
referenciais era o fato de não ter uma parte prevendo a transição da educação
infantil para o ensino fundamental, extremamente importante. Agora, com o
aumento de um ano do fundamental, ela se torna mais necessária. E em outros
aspectos em que o debate avançou, como a questão da diversidade cultural,
coisas fáceis de complementar. O próprio Ministério está acenando com uma
revisão. Mas, como é outro partido, querem fazer um documento novo...
Entre 1996 e 2003, a senhora participou de um
grande levantamento sobre a questão da qualidade na educação infantil
brasileira. Quais as principais conclusões a que chegou?
O
debate sobre a qualidade da educação infantil seguiu um caminho diferente
daquele do ensino fundamental ou do médio, em que ocorreu muito a partir dos
resultados dos sistemas de avaliação (Saeb, Prova Brasil, Saresp, Enem, Pisa
etc.). Nessas etapas, a questão da qualidade foi vista por meio de um
indicador, que é o resultado do aluno no teste. É um indicador, mas há outros.
Na educação infantil, não havia e não há até o momento um sistema de avaliação
que meça resultado desse tipo (há em outros países, aqui não). Por isso, o
debate foi mais aberto. E teve uma influência grande do debate internacional,
em função de documentos que já haviam sido escritos no âmbito da Comunidade
Européia (vários especialistas que colaboraram com esses documentos vieram a
congressos no Brasil). Esses especialistas ajudaram a trazer uma visão mais
holística da educação infantil, voltada ao desenvolvimento integral da criança,
e não só aos aspectos cognitivos e de aprendizagem. Os italianos têm uma
expressão muito bonita, "as cem linguagens da criança" - as
linguagens da criatividade, da expressão corporal, das brincadeiras, da arte,
enfim, da cultura da infância. É óbvio que, no caso europeu, eles partem de
patamares de qualidade muito diferentes - sociais, de formação dos professores
etc.
E os norte-americanos?
Também houve uma influência, menor, da tradição norte-americana. Eles têm uma
associação nacional, da sociedade civil, com participação intensa de grandes
especialistas da área, chamada Nayce (National Association for the Young
Children Education), que tem um sistema de credenciamento das instituições de
educação infantil e dos profissionais. É como se fosse um selo de qualidade.
Sejam particulares, municipais, comunitárias, as instituições têm o interesse
em obter esse aval. É muito respeitado. É uma certificação geral. Implica uma
visita aos centros onde se observa uma série de coisas, existem escalas que se
preenchem, observam-se as crianças e se avalia a formação dos professores. Os
docentes também podem ser credenciados, independente da instituição em que são
formados. Podem obter um título que certifica que têm uma formação adequada
para trabalhar com crianças daquela faixa etária. Isso impôs um padrão daquilo
que é considerado desejável nas melhores instituições. Esse modelo também é
conhecido aqui, tem alguns grupos de universidades que fazem pesquisas. Também
há influência, mas menor que a européia. Então, o debate de qualidade foi
voltado para uma concepção de educação infantil bastante aberta, que valoriza a
brincadeira, uma variedade de experiências da criança, as atividades de cuidado
que devem ser integradas às educativas. Há uma concepção pedagógica bastante
inovadora para as crianças de 0 a 3 anos. Mas isso foi muito mais divulgado no
meio acadêmico e entre alguns especialistas e ONGs que dão assessoria a
instituições do que para as redes, de forma ampla. Nelas, chegam apenas ecos, e
às vezes mal entendidos.
E quais seriam os elementos norteadores para termos
instituições de qualidade no Brasil, dentro da nossa realidade?
Há indicadores usados internacionalmente, como a quantidade de crianças por
professor. Neste caso, há alguns detalhes: num primeiro momento, é preciso
saber quantos adultos trabalham por creche, quantas crianças tem por faixa
etária, seguindo a lógica de que, quanto menor a criança, menos crianças por
adulto. Jamais 30 ou 35, como vemos por aí.
Também não é a mesma coisa ter 40 crianças de 4 anos numa sala com dois adultos
ou ter 20 crianças em cada sala com um adulto. As pesquisas mostram que os
adultos tendem a se relacionar entre si e esquecer as crianças. É comum entrar
numa sala e haver várias crianças largadas e duas professoras conversando. Ou
seja, não significa a mesma coisa de ter grupos pequenos com um adulto
interessado, interagindo com as crianças. Mas ter um número grande de crianças
e poucos adultos é péssimo. Outro indicador é a formação do pessoal.
Internacionalmente, hoje só se aceita formação em nível superior. Mas isso tem
de ser relativizado no Brasil, como mostrou a pesquisa da Fundação Carlos
Chagas, pois a formação em nível superior pode ser bastante vazia.
Outra questão importante é a comunicação com as famílias, muito ruim na maioria
das instituições brasileiras. Isso é fundamental para a criança pequena, que
depende muito do adulto, tanto do familiar como do professor. O que aconteceu
com aquela criança à noite que no dia seguinte ela só chora na creche? O que
ela comeu na creche que a fez passar mal quando chegou em casa? Essa
comunicação é mal resolvida e é um indicador de qualidade, comprovado por
pesquisas quantitativas.
E o currículo?
Ele tem de existir. As pessoas precisam saber o que estão fazendo, seus
objetivos. Há rotinas, até medievais, que se reproduzem indefinidamente. E são
empobrecedoras. Você chega a uma creche e as crianças estão encostadas,
sentadas no chão, sem falar ou se mexer, e você pergunta para a educadora o que
estão fazendo. A resposta é que estão esperando a hora do lanche, ou do banho,
ou de ir embora, ou de ir para o pátio. Estão sempre esperando. Por quê? Porque
é uma rotina que se limita a higiene, alimentação e sono, não existe um
objetivo que transcenda isso - de aprendizagem, de ampliação do conhecimento,
de socialização, de contato com a natureza. Pesquisas americanas mostram que só
o fato de existir um currículo já faz diferença, porque significa que a equipe
teve a preocupação de ter alguma referência - um plano, um documento - que diga
a que veio. Aí, num segundo momento, pode-se julgar se esse documento é bom ou
ruim, se contempla o que tem de contemplar, qual é a filosofia, se não
discrimina - as meninas, as religiões, a origem etc.
E as instalações?
São outro indicador importante: o prédio, os equipamentos, os brinquedos disponíveis
no parquinho infantil e em sala. É preciso avaliar se há livrinhos infantis
para os não leitores irem se habituando a eles, se ficam à disposição nas
prateleiras; como é o espaço externo, se é acolhedor, se tem gramado, se bate
sol, se tem árvores, areia, água; como é o espaço interno, se as salas são
iluminadas, arejadas, se há espaço para as crianças engatinharem, aprenderem a
andar, brincar; se o mobiliário é adequado ao tamanho das crianças; se existe
material de estímulo, cores, formas; se os trabalhos das crianças estão
expostos. Tudo isso são indicadores relativos, digamos, ao meio ambiente em que
a criança passa longos anos de sua vida.
E normalmente isso tudo é levado em conta?
No
Brasil, a concepção espacial, da creche e da pré-escola, mesmo as particulares
e voltadas ao público de alta renda, é pobre. Normalmente, existe uma concepção
de escola fundamental tradicional que se transpõe para a educação infantil. Nas
experiências mais interessantes em nível internacional, até a concepção arquitetônica
da escola infantil, sua planta, é completamente diferente, pois a visão
educacional é mais rica e pede um outro espaço. Nas creches do norte da Itália,
o exemplo mais conhecido, a arquitetura já se desvencilhou dessa forma de
salinha, salinha e corredor. Em recente exposição sobre as escolas infantis de
Reggio Emilia, havia plantas e uma maquete que mostravam que eles pegaram uma
tradição italiana que vem do Renascimento, que é a praça como local de
encontro, de cada um se perceber como membro de uma comunidade, de criar aquele
espírito cívico, e transpuseram isso para a escola. Então, a escola tem um
espaço central coberto, com todos os ambientes dando para esse espaço, que tem
visibilidade e é o local de encontro para vários momentos. Pode-se dizer que
isso é o ideal, que aqui é difícil. Realmente. Mas existem etapas
intermediárias até chegarmos perto de algo desse tipo. É importante começar a
percorrer esse caminho, a quebrar essa forma tão empobrecedora que encontramos
principalmente nas instituições voltadas à população de baixa renda, a que mais
precisa, pois também não tem isso em casa.
Há
muita divergência entre o que a família e os educadores crêem que seja uma
educação infantil de qualidade?
A família tende a ser mais concreta e se ater aos aspectos que ela pode
enxergar. Vimos isso na pesquisa da Fundação SM sobre a qualidade da educação
infantil. Para as famílias, o critério mais importante para julgar se a creche
ou pré-escola é boa é "cuidar bem da criança". Esse cuidar bem, para
a família, significa que a criança não está largada, maltratada, descuidada. Há
mães que chegam às 7h da manhã com um bebê de colo e só voltam às 18h para
buscá-lo. Imagine a agonia que é isso numa instituição em que as pessoas não
dão a mínima, não deixam a mãe entrar, só a atendem na porta ou num guichê... É
uma faixa de idade muito vulnerável. É preciso deixar os pais irem à sala onde
a criança vai ficar, deixá-los passar o dia na creche para ver como funciona,
ter atitudes de acolhimento, mesmo que seja difícil, pois as famílias
brasileiras são de baixa renda, baixa escolaridade. É preciso lidar com essa
realidade, deve haver um diálogo para o qual nos qualificamos muito mal. Os
professores têm uma enorme desconfiança em relação à família, muito preconceito,
qualquer problema que a criança apresente na escola é entendido como culpa da
família ('não cuida, 'não se importa', 'é desestruturada' etc.), e raramente
olham para si próprios, para suas práticas.
Um
dos modelos mais usados para ampliar a oferta de creches é o de instituições
conveniadas. É satisfatório? É preciso ter requisitos mínimos para os
convênios?
Esse
é o ponto. Há convênios e convênios. Há aqueles baseados em motivos políticos,
em que um vereador tem uma entidade e consegue um convênio com o prefeito. E
existem aqueles em que não é qualquer um que firma um contrato, em que há
supervisão, compromissos mútuos etc. Existem sistemas de convênios bem
administrados, bem supervisionados, exigentes. Mas existe uma pressão muito
grande em função da demanda não atendida. Aqui em São Paulo é dramático, há
listas de espera com milhares de crianças que precisam de vaga e não têm. Essa
pressão faz com que os administradores apelem para as soluções mais esdrúxulas,
creches domiciliares e outras que atendem sabe-se lá onde. Até recentemente,
não tínhamos nenhum recurso de financiamento educacional previsto, ficava-se
com as sobras. O Fundeb tentou resolver isso, só que ainda é insuficiente, pois
o valor é muito baixo para as necessidades da educação infantil. Mas já é uma
melhora.
O atendimento direto (do Estado) é melhor ou
pior que o conveniado?
De modo geral, é melhor, principalmente pelo fator pessoal. Porque, no direto,
as pessoas precisam ter concurso, um determinado nível de formação para
trabalhar, há uma fiscalização social maior.
Mas
esse não poderia ser um dos requisitos do convênio?
Mas não é o que acontece. Por que o convênio é mais barato? Há menos
burocracia, menos perdas de outra natureza, mas também pelo fator pessoal, que
é o que mais pesa. As pessoas são contratadas e descontratadas mais facilmente,
não se exige muita coisa delas. No convênio, as exigências às vezes são
'flexibilizadas' pela entidade contratada. Na pesquisa sobre qualidade, apesar
de nossa mostra não ser representativa do ponto de vista estatístico (52
escolas de 4 estados), o perfil dos professores de entidades conveniadas
apontava para pessoas de renda e escolaridade mais baixas, quando comparado ao
perfil daqueles das redes públicas. E isso pesa.
Há
alguma experiência internacional em que pudéssemos nos mirar em relação à
expansão de vagas para a educação infantil, que tenha ocorrido sem que houvesse
queda na qualidade?
Há o exemplo da França. Eles têm a chamada escola maternal, uma instituição
francesa. Ela é totalmente integrada à rede de ensino, e funciona daquele jeito
francês, todas muito parecidas, de muito boa qualidade, todas as professoras
com formação superior. As crianças entram de manhã e saem no meio da tarde. São
de um estilo mais tradicional, cada professor atende sua turma, tem horários,
currículos, atividades que todas as crianças devem fazer. O que eles fizeram?
Foram universalizando, indo gradativamente para as cidades menores. Eles tinham
universalizado até os 4 anos já havia vários anos, aí universalizaram para os 3
anos, e recentemente começaram a aceitar crianças de 2 anos, o que é bastante
polêmico. Fizeram isso com uma qualidade padronizada nacionalmente.
Qual
o motivo da polêmica?
As crianças de 2 anos exigem uma atenção mais individualizada, talvez exijam
que se diminua o número de crianças por turma. O sindicato dos professores
começou a ficar preocupado se havia crianças com fraldas etc. Existem as
creches lá também, mas não são vinculadas à área da educação, e sim à da saúde.
Qual
sua opinião acerca da integração no mesmo espaço escolar de crianças dos 0 aos
6 anos de idade?
É boa, inclusive também é melhor para famílias que têm, por exemplo, um filho
de 3 anos e outro de 5. A maioria das escolas particulares tradicionais tem
outro sistema de divisão. Recebem crianças de 2 a 5 anos num prédio, e de 6 num
outro prédio. Não há nada contra isso, pode ser uma ótima instituição. O que
interfere mesmo nessa faixa é se a criança fica período integral ou meio
período, porque aí muda completamente o que você tem de proporcionar. Mesmo uma
criança de 4 anos, se ela fica o dia inteiro, significa que é preciso ter um
outro arranjo, uma outra maneira de trabalhar, diferente daquela existente nas
escolas que ficam apenas meio período com as crianças.
Cognitivistas
sustentam que muito do desenvolvimento cerebral ocorre até os 2, 3 anos de
idade e muitos defendem que as crianças estejam expostas a um grande número de
estímulos na educação infantil. O que pensa disso?
Outro
dia, numa reunião no Conselho Superior da Capes, em que há gente de todas as
áreas - química, biologia, biofísica -, havia um professor que começou a falar
sobre isso, numa linha de pensamento que vem sendo muito difundida. Porque não
sei quantos por cento das sinapses se processam até tal idade etc. E pensei
comigo: se for acreditar no que ele diz, vou ter de mudar de profissão. As
concepções mais avançadas de educação hoje, européias, são de educação ao longo
da vida, que significa ser educado desde o nascimento, sim, porém prosseguindo
até que a pessoa morra. Quer dizer, o ser humano é altamente flexível e tem uma
plasticidade enorme, tem possibilidades ainda não totalmente exploradas. E não
é porque uma criança chegou à escola aos 6 anos que não pode aprender um monte
de coisas e se tornar doutora em física. Há muitos exemplos disso. A
ex-ministra Marina da Silva só foi aprender a ler com 18 anos. E o que
aconteceu com as sinapses dela? Estavam muito bem, obrigado.
Qual é o ponto, então?
Essa faixa de idade tem uma enorme capacidade de aprendizagem, de incorporar
uma série de elementos, que estão abertos para o mundo justamente porque
precisam ganhar autonomia para sobreviver. É verdade também que é muito
importante o que acontece com ela nos primeiros anos de vida. É preciso
enfatizar isso, até mesmo para que se faça um lobby para melhorar o
financiamento e a qualidade da educação infantil. Mas isso não pode ser tomado
de uma maneira restritiva, do tipo "se não teve, agora não dá mais".
Você já pensou como as escolas ficariam se seguissem isso? A professora da 1ª
série diria àqueles que vieram de escolas ruins que não valeria a pena perder
tempo com eles, pois sabe-se lá o que aconteceu com as sinapses dessas
crianças...
Corremos
o risco de supervalorizar essa visão e de reduzir a educação infantil a uma
questão de alta estimulação cerebral, enquanto outras dimensões educativas são
negligenciadas...
Isso é péssimo até para a própria aprendizagem cognitiva, pois há uma questão
que o pessoal dessa corrente esquece: o ser humano, e mais ainda as crianças
pequenas, são seres integrados. Conforme vamos ficando mais velhos, conseguimos
especializar os campos de atuação, distinguir diferentes papéis que exercemos.
A criança pequena tem essas experiências todas muito mais integradas. Por
exemplo, a questão afetiva é absolutamente colada na questão da aprendizagem.
Se ela não está bem afetivamente, não vai aprender. Se ela não está se sentindo
bem com os colegas e com a professora, com um bom ambiente em casa, ela não
estará pronta para se desenvolver em outros campos. Isso tudo acontece de forma
integrada. A ênfase só no aspecto cognitivo é complicada.
Como se quer que uma criança aprenda se, como acontece aqui em São Paulo nas
redes estadual e municipal, há até cinco remoções de professores enquanto ela
cursa a 1ª série do fundamental? Uma criança que pisa pela primeira vez na
escola, vem de um meio social desfavorecido, e a sua primeira professora é
trocada cinco vezes num ano. É óbvio que essa criança não vai aprender. A
primeira professora da criança carrega uma grande carga afetiva para ela , é o
seu modelo. Até as músicas dizem isso. E quanto mais isso acontecer, melhor,
pois ela vai se alfabetizar melhor, vai ficar mais entusiasmada com as tarefas.
Então, essa linha de pensamento é importante se integrada a um pensamento mais
complexo e multidimensional. E é perigosa quando se torna unidimensional. Por que os economistas gostam dela? Porque
estão sempre obcecados em encontrar aquele determinado fator em que você coloca
o seu dinheiro e, passados determinados anos, você tem uma taxa x de retorno.
Eles calculam essa taxa de retorno para o indivíduo, de forma econométrica. Se
a pessoa fez pré-escola, foi bem na escola, sem repetir, conseguiu chegar ao
nível superior e aí tem um salário x, quanto custou sua educação, incluindo o
que a família deixou de ganhar pelo fato de ela ter estudado e não trabalhado,
o que gastou de condução etc. Soma-se tudo isso, compara-se com o ganho da
pessoa e extrai-se essa taxa de retorno. Então, estão interessados em saber
onde vão colocar o dinheiro para dar aquela taxa de retorno. O fato é que, com
esse raciocínio, eles querem encontrar aquele determinado fator no qual vale a
pena gastar dinheiro. É óbvio que estou caricaturando, pois há pessoas
inteligentes que fazem estudos importantes, mas existe essa tendência. Então
eles ficam maravilhados quando aparece esse pessoal falando essas coisas. E não
gostam dos educadores, porque costumamos dizer que as coisas são mais complexas
do que isso. Mas têm razão numa crítica que fazem à área educacional: nós
geralmente somos pouco objetivos, temos dificuldade de tomar decisões do tipo
"vamos melhorar 100% das escolas ou só 10%". Os educadores têm
dificuldade de ver as coisas de forma mais objetiva. Os economistas, ao
contrário: têm dificuldade de ver as coisas na sua complexidade, querem
transformar tudo em número. E não é tudo que dá para transformar em número.
Qual o papel central da educação infantil? Depende.
Se pensarmos na creche, ela tem objetivos não só educacionais, mas também sociais
e de igualdade de gênero, para que a mulher possa participar totalmente da
sociedade, não só do trabalho, mas de atividades políticas, cívicas, lazer,
cultura etc. São papéis importantes que extrapolam o ponto de vista
educacional. Sob o ponto de vista da educação, é muito importante e todas as
pesquisas indicam que o fato de a criança ter tido ou não uma boa educação
infantil faz uma grande diferença para a sua carreira educacional. Há pesquisas
interessantes nos EUA e na Inglaterra que mostram consistentemente a
importância do acesso à educação infantil de boa qualidade, ou razoável. São
efeitos diretos na aprendizagem nas séries posteriores - em matemática,
linguagens etc. - e também em outras coisas, como as habilidades sociais, de
relacionar-se, de se colocar frente ao coletivo. Isso tudo é consensual.
E o que não é consensual?
O que ainda é objeto de polêmica é com relação à faixa dos pequenos. Aí há
diferenças entre as pesquisas, que não permitem conclusões definitivas. Faz
diferença o tipo de família de onde a criança provém. Para aquelas que vêm de
famílias de baixa renda, com alguma situação de risco, com certeza é melhor ter
um bom atendimento do que ficar em casa. Mas para as crianças em geral existem
resultados divergentes, pois às vezes a criança pode ter um atendimento muito
bom em casa ou na sua comunidade, que não é um atendimento formalizado de
creche. No caso da pré-escola, os resultados são todos consistentes. É bom, faz
diferença, mas faz mais diferença para as crianças mais pobres. E de diversas
maneiras. Tanto na aprendizagem stricto sensu como nas habilidades importantes
para a formação de qualquer cidadão.
Mas se tivesse de resumir a importância da educação
infantil, qual seria?
Preparar a criança para um melhor aproveitamento na escola primária. E é ótimo
que prepare, sob todos os aspectos, pois nossos indicadores de aproveitamento
na escola primária são obscenos. Então, se preparar, ótimo. Mas não é só isso.
A infância da criança está sendo vivida neste momento, e é bom que ela seja bem
vivida. Se a criança passa 8 horas por dia numa instituição de educação
infantil, praticamente está passando a infância ali. Então precisa brincar,
desenvolver-se, socializar-se, criar habilidades motoras etc. O Brasil deu um
passo importante na definição de sua legislação. Somos vistos com muita
curiosidade pelos analistas de políticas educacionais internacionais, porque
foi um país que fez isso de forma ousada. Pegou a faixa de 0 a 6 anos e colocou
inteira na educação. Outros países, como a Suécia, estão fazendo isso só agora,
e depois de um grande debate.
O texto acima é a íntegra da entrevista publicada na
edição número 2 da série Educação Infantil, apresentada pela
revista Educação. A publicação já
está nas bancas.
Docente do Departamento de Educação e Sociedade do
Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ), Flávia Miller Naethe Motta é professora convidada do Curso de
Especialização em Educação Infantil da PUC do Rio de Janeiro. Formada em
psicologia, com mestrado e doutorado em educação, Flávia Motta é membro do
Grupo de Pesquisa Infância, Formação e Cultura (Infoc). Em sua opinião, a
educação infantil é uma etapa fundamental na construção do pensamento mais
complexo e o professor é aquele que vai mediar as relações que as crianças vão
estabelecer com o seu contexto cultural e com os saberes do mundo.
Para ela, a escola
é o espaço apropriado para a construção dos conceitos científicos que
permitirão ao pensamento infantil uma passagem para um nível diferente de
pensar, marcado pelas funções mentais superiores. Além disso, acredita que
fatores como a perda de espaços anteriormente utilizados para as brincadeiras
das crianças – como as ruas – e a redução do tamanho das famílias, fazem com
que a escola acabe por ser um espaço, imprescindível, de convivência e de
troca.
Jornal do Professor – Qual é a importância da
educação infantil? Com qual conceito ela foi criada?
Flávia Motta – A educação infantil, a partir da Constituição de
1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional de 1996, foi reconhecida como um direito da criança,
um dever do Estado e agora, paulatinamente deixa de ser uma opção da família,
para constituir-se numa obrigação, com a aprovação da PEC 96A/03. A oferta da
educação infantil, enquanto política de Estado, é o reconhecimento das crianças
como sujeitos sociais de direitos.
A importância da
educação infantil, entretanto, extrapola o aspecto social, quando pensamos o
que ela pode significar para cada criança concreta que pode vivenciar essa
experiência. Hoje reconhecemos que as crianças são sujeitos produzidos na e
produtores de cultura. Sabemos que a socialização não é um processo vertical,
de cima para baixo, onde as gerações mais velhas incutem valores nas mais
novas. As crianças ressignificam o que o mundo ao seu redor oferece a elas e
esse processo acontece de maneira intensa naquilo que chamamos hoje de cultura
de pares. A possibilidade de se encontrar entre outras crianças propicia a
intensificação deste processo que se dá desde muito cedo, com bebês ainda na
creche.
Devemos reconhecer
ainda a função do professor de educação infantil como aquele que vai mediar as
relações que as crianças vão estabelecer com o seu contexto cultural e com os
saberes do mundo. A criança constrói conhecimentos espontâneos para explicar a
realidade ao seu redor. A escola, desde a educação infantil, é o espaço apropriado
para a construção dos conceitos científicos que permitirão ao pensamento
infantil uma passagem para um nível diferente de pensar, aquele que segundo
Vigotski é marcado pelas funções mentais superiores.
Sabemos que a
escola moderna teve um papel significativo na construção do sujeito da
modernidade e do próprio sistema capitalista. De uma forma geral, ela foi
pensada para atender a um modelo de criança oriunda das classes dominantes.
Esse modelo de criança, que crescia numa cultura aproximada daquilo que era
cobrado na escola, afastava ainda mais as crianças das camadas populares. Dessa
forma, a educação infantil assumiu, desde muito cedo, um caráter compensatório,
onde deveria propiciar às crianças mais pobres, um acesso a um mundo cultural
legitimado pela cultura dominante. Essa educação que pode ser chamada de
compensatória foi influenciada por Pestalozzi, Froebel, Montessori e McMillan.
A pré-escola era encarada como uma forma de superar a miséria, a pobreza, a
negligência das famílias. Junte-se a isso, o desempenho esperado na escola
primária e a educação infantil tinha tudo para se tornar um espaço preparatório
que deveria suprir aquilo que, nessa concepção, faltava às crianças.
Por outro lado, a
educação infantil desenvolveu-se atrelada à necessidade das mães trabalhadoras,
de terem um lugar onde deixar suas crianças. As creches supriam, dessa maneira,
uma necessidade dos adultos (não que isso não fosse legítimo, mas sua motivação
não estava naquilo que era efetivamente uma demanda infantil). Assim, antes de
uma instituição educativa, a creche se configurava como uma entidade
assistencial. Inicialmente podemos pensar então numa educação voltada para os
cuidados e para o desenvolvimento intelectual – no sentido da cultura dominante
– que as famílias de origem popular não podiam oferecer às suas crianças.
JP – Quais os níveis existentes na educação
infantil e quais as principais diferenças entre eles?
FM – A educação infantil se divide em creche (0 – 3
anos) e pré-escola (4 e 5 anos). Na prática, durante muito tempo se discutiu a
dicotomia entre o educar e o cuidar, como se uma fase demandasse mais cuidados
e outra, mais educação. As pesquisas no campo educacional mostraram,
entretanto, que essa era uma falsa dicotomia e que as duas características estão
presentes em todos os níveis de escolaridade.
De qualquer forma,
vemos hoje instituições profundamente marcadas pela cultura escolar, onde
alfabetos são colocados nas paredes do berçário e as experiências de letramento
são pensadas, não como apropriação de uma leitura crítica ou estética do mundo,
mas como aquisição de ferramentas de codificação e decodificação da escrita e
da leitura. Creio que a pré-escola acaba sendo mais cobrada dessa função
escolarizada, enquanto a creche continua sendo percebida, muitas vezes, como
espaço de guarda das crianças. Felizmente, essa concepção de educação infantil
encontra críticos que propõem novos olhares, no dia-a-dia das escolas, na
academia, nas pesquisas.
A obrigatoriedade
da escolarização a partir dos quatro anos, no entanto, promove uma grave cisão
na educação infantil, que, mais uma vez, se vê pensada nas duas fases que a
compõem: creche e pré-escola. Na medida em que a creche fica excluída desse
processo - e não se trata aqui de defender a sua obrigatoriedade! – temos uma
diminuição da sua importância perante os órgãos públicos que devem garantir seu
financiamento. A questão pode ser vista ainda pela ótica de que a existência de
um direito, previsto na Constituição desde 1988, não é suficiente para a sua garantia,
o que o faz valer é a sua demanda virar uma obrigação. Sem dúvida, aumentar a
oferta de pré-escolas tem um lado extremamente positivo e provavelmente vai
beneficiar crianças que hoje estão fora da escola. Os aspectos orçamentários
presentes nesse debate também merecem destaque. Segundo a Emenda Constitucional
nº 59/09, os recursos devem ser alocados prioritariamente na nova faixa de
obrigatoriedade (novo § 3º do art. 212), o que significa que, a nível
municipal, a ampliação dos recursos só pode se dar pela pré-escola, uma vez que
o ensino médio não é de sua competência. O direito à creche, nesse contexto,
parece ter deixado de ser exigível. De fato, a obrigatoriedade da escolarização
dos 4 aos 17 anos está posta. Trata-se agora de discutir que escola é esta que
será oferecida às crianças, lembrando ainda o quanto é artificial essa divisão
que separa em universos distintos crianças até 5 anos e 11 meses daquelas que
já completaram 6 anos. O que está em jogo é o modelo de educação a ser
implantado nas escolas para as crianças até os 10 anos, fase em que ainda se
situam na infância.
JP – O que é importante aprender nesta fase? O que
as crianças desenvolvem nesta etapa da vida?
FM – Essa etapa é fundamental na construção do
pensamento mais complexo. Nessa fase a criança está aprendendo coisas
referentes aos saberes escolarizados, mas está também aprendendo muitas outras:
o que é ser menino ou menina, qual a diferença dos papéis sociais de pessoas de
diferentes etnias/raças, qual é o valor estético de uma produção mais autêntica
ou de outra, mais voltada para a estética dos adultos, entre outras. Não é à
toa que vemos muitas crianças terminarem a educação infantil realizando aqueles
desenhos estereotipados que mostram casas, árvores e flores coloridas, bem dentro
da idéia que nós adultos temos do que deve ser um desenho infantil. Se
pensarmos em termos mais filosóficos, podemos afirmar que o que está em jogo
nesse momento é a construção de uma moral, de uma ética e de uma estética que
vão orientar o sujeito, não de forma determinista – pois as situações concretas
de sua vida podem levá-lo a reformulá-las – mas de qualquer maneira, elementos
que serão estruturantes de valores e, se ainda podemos usar esse conceito, tão
criticado pelo pensamento contemporâneo, da sua identidade.
JP – A partir de que idade é importante que uma
criança frequente a educação infantil?
FM - É complicado estabelecer idades que funcionem de
maneira igual para sujeitos com histórias diferentes. De qualquer forma,
acredito que o contato com pessoas para além do círculo familiar mais próximo é
uma experiência rica desde a mais tenra idade. Atualmente, espaços que eram
ocupados pelas crianças foram sendo perdidos; não se brinca na rua como
antigamente, as famílias, de uma maneira geral estão mais reduzidas ou
restritas aos núcleos mais centrais. Assim, a escola acaba por ser um espaço de
convivência e de troca, imprescindível na atualidade.
JP – Quais as habilidades que um professor precisa
ter para atuar neste nível de aprendizagem?
FM - Um professor, de qualquer faixa etária, deve ser
alguém que tenha interesse por gente, goste de dialogar (verdadeiramente
ouvindo o que o outro tem a dizer) e que procure desenvolver uma postura
reflexiva de sua prática. Isso, no entanto, se aplica a professores desde a
educação infantil até a formação universitária. Além disso, considero
importante ainda que o professor se permita explorar aspectos relativos à
cultura: música, filmes, museus, teatro, literatura, para que ele possa
vivenciar experiências estéticas que possibilitem que ele seja um mediador das
mesmas para seus alunos. Creio ainda ser importante que esse professor seja
antenado com as culturas infantis, tanto naquilo que as crianças produzem,
quanto naquilo que é produzido para elas, para ter elementos que permitam uma
troca efetiva e uma crítica do que é ofertado para o consumo das crianças. Por
fim, acho que deve ser alguém disposto a abrir mão de uma lógica
adultocêntrica, que enxerga o mundo pelas lentes da cultura adulta.
JP – Em sua opinião, os professores de educação
infantil estão sendo preparados de forma adequada pelos cursos de pedagogia?
Por quê? Em caso negativo, o que precisaria mudar nos currículos?
FM - É complicado falar dos “professores” como é
complicado falar das “crianças” generalizando aspectos de uma realidade que é
muito complexa. Tenho certeza que temos excelentes programas de graduação,
assim como reconheço que devam haver vários que deixam muito a desejar. O fato
concreto é que a formação inicial e a prática precisam se articular através dos
estágios, da pesquisa, das atividades de extensão e também de um movimento das
escolas em acolher os novos professores e contribuírem em sua socialização
profissional.
JP – Quais são as novas diretrizes da educação
infantil? Quais os avanços que traz?
FM - O documento atualmente representativo das
diretrizes governamentais são os Subsídios para Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Básica - Diretrizes Curriculares Nacionais
Específicas Para a Educação Infantil, elaborado com a consultoria da professora
Sonia Kramer e disponível na página do MEC. A revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Infantil fundamenta-se numa concepção de criança enquanto
sujeito sócio-histórico-cultural, cidadão de direitos. E reconhece que as
instituições educativas devem considerar as especificidades e singularidades da
criança, com ênfase em práticas de educação, nas quais está envolvida a
dimensão do cuidado, responsáveis pelo desenvolvimento físico, emocional,
afetivo, cognitivo, linguístico e sociocultural.
As propostas
pedagógicas para a educação infantil devem atender às especificidades das
crianças de 0 aos 6 anos, sujeitos sociais, produtores de cultura e produzidos
na cultura. Ao longo deste período, vão sendo desenvolvidas a linguagem (verbal
e não-verbal), afetividade emoções e sentimentos), a motricidade (os
movimentos, a gestualidade, a expansão do corpo no espaço) e a cognição (o
pensamento, a dimensão racional), constituindo-se nas interações sociais.
A ludicidade
caracteriza o trabalho pedagógico nas instituições de educação infantil: o
desenvolvimento e a aprendizagem são relacionados às possibilidades de brincar;
a brincadeira é compreendida como uma forma de aprender o mundo por parte da
criança. Para tal, é necessário garantir materiais lúdicos/brinquedos de
qualidade e que o profissional que atua com a criança tenha conhecimentos sobre
a cultura lúdica.
A educação
infantil, como primeira etapa da educação básica, é direito social das crianças
e de suas famílias, sem qualquer requisito de seleção. Além disso, há uma
qualidade do trabalho cotidiano nas instituições de educação infantil que deve
ser assegurada, considerando a identidade e a diversidade sócio-cultural das
crianças e suas famílias; a organização do tempo em rotinas que equilibrem
segurança e flexibilidade; ritmos individuais e referências familiares;
vivências pessoais e experiências culturais; a organização de espaços deve
torná-los acolhedores, desafiadores, saudáveis e inclusivos, e deve promover o
contato com equipamentos culturais (livros de literatura; brinquedos; objetos;
produções e manifestações artísticas) e com a natureza. Aspectos como higiene,
conforto, relação apropriada entre a quantidade de adultos e crianças também
devem ser observados.
As propostas
pedagógicas das instituições de educação infantil devem respeitar o direito à
liberdade, à exploração dos espaços, à brincadeira e à expressão de
significados pelos movimentos, palavras, desenhos e outras formas de produção
simbólica, bem como o direito das crianças à apropriação e construção dos
conhecimentos e a ampliação do universo cultural. Devem ainda respeitar e
acolher as crianças em suas diferenças; entendendo que são cidadãs de direitos
à proteção e à participação social;
Os eixos de
saberes e conhecimentos a serem contemplados são: - As crianças e a arte: experiências estéticas e expressivas com a música, artes visuais e plásticas, cinema, fotografia, dança, teatro, literatura. - As crianças, a leitura e a escrita: experiências de narrativa, de apreciação e interação com a linguagem oral e escrita, convívio com diferentes suportes e gêneros textuais orais e escritos. - As crianças e o conhecimento matemático: experiências de exploração e ampliação de conceitos e relações matemáticas. - As crianças e a natureza: experiências que possibilitem o contato, o conhecimento, o cuidado (a preservação) da biodiversidade e a sustentabilidade da vida na Terra. As diretrizes sugerem ainda uma atenção especial às transições vivenciadas pelas crianças. Que envolvem, desde a passagem entre o espaço privado – da casa – ao público – da instituição, quando do ingresso da criança na creche, na pré-escola ou na escola, até aquelas que acontecem no âmbito do próprio segmento: entre as diferentes faixas etárias; entre instituições, no caso da passagem da creche à pré-escola; entre turnos e/ou entre docentes, no caso das crianças que frequentam a instituição em turno integral; e, num mesmo turno, entre os diferentes momentos que compõem as rotinas diárias. JP – Qual o seu recado para o professor da educação infantil? FM - Não sei se há um recado específico a ser dado, mas creio que ele deva ter consciência da importância da sua função e reconheça que os sujeitos com os quais se depara no cotidiano, por mais novos que sejam, têm uma história, uma cultura, valores que devem ser respeitados e trazidos para a escola como elementos constituidores das práticas educativas que vão se desenvolver ali. Lembro ainda que se há uma especificidade nesses sujeitos de pouca idade, é que eles produzem cultura, são nela produzidos, brincam, aprendem, sentem, criam, crescem e se modificam, ao longo do processo histórico que constitui a vida humana e, por fim, que as crianças são constituídas a partir de sua classe social, etnia, gênero e por diferenças físicas, psicológicas e culturais. Luciana Prado é professora da Pequena Casa da Criança há mais de quatro anos. Em homenagem ao Dia dos Professores, vamos saber um pouco sobre as atividades dela na Pequena Casa. Ela dá aula de Educação Física para os alunos da Educação Infantil.Pequena Casa – Quais são as atividades que você oferece nas suas aulas?Luciana – Essencialmente atividades recreativas, como jogos e brincadeiras. Mas também trabalhamos o aspecto do equilíbrio, com atividades voltadas para a postura da criança. Claro que futebol e vôlei não podem ficar de fora. São esportes que ajudam no convívio em grupo.Pequena Casa – Onde acontecem as aulas?Luciana – Normalmente acontecem no Terraço, pois, o espaço que temos na instituição hoje é limitado. A quadra e o ginásio são ocupados por outros programas e outras atividades da Escola, então ficamos no Terraço. Dá pra desenvolver as atividades aqui, mas o melhor seria em um ambiente com mais espaço e mais liberdade. Aqui temos que tomar cuidado com os vidros das janelas, as portas e eles não podem correr muito. Pequena Casa – O que você pensa quando está com as crianças, você reflete sobre a realidade da comunidade?Luciana – Não tem como não pensar. A gente olha nos olhos dos nossos alunos e vê a alegria de estar aqui, recebendo a educação, o carinho, o respeito. Penso na situação delas e tento proporcionar o melhor convívio possível. Pequena Casa – É diferente de outros lugares em que você já trabalhou?Luciana – Sem dúvida. Já dei aula em escolas particulares e trabalho em outros lugares. Aqui é diferente. Recebo o carinho de forma muito mais intensa. Eles expressam esses sentimentos de forma mais constante. Há uma necessidade desta troca de carinho, eles precisam dar e receber esse amor e atenção. Pequena Casa – Por estar aqui há bastante tempo, o que mais você guarda de lembrança destes anos?Luciana – Eu trabalho com crianças desde o Nível 1 e já vi sair muitos alunos. Quando a gente se encontra na rua, no shopping, por exemplo, eu recebo o reconhecimento, o carinho. Eles vêm falar contigo com um sentimento de gratidão. Isso é muito bom. Alguns até dizem: ‘quando eu crescer quero ser que nem tu, professora. Isso motiva bastante e é uma boa lembrança que eu tenho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário